18.1.12


Corria o ano de 1970, pouco mais de um ano e meio após o mais duro e covarde golpe da Ditadura Militar no povo brasileiro: O AI-5, o temido artigo que punia severamente qualquer cidadão opositor ao Regime. Tinha poderes para censurar, tirar direitos políticos e até prender sob custódia de "se opor ao país".

Os Festivais de Músicas revelavam grandes nomes e, entre os mais famosos (e já consagrado) estava o de Chico Buarque, que ganhara a edição de 1968, junto de Tom Jobim, com a canção "Sabiá". Filho do famoso Aurélio Buarque de Holanda, Chico era esclarecido e contra a Ditadura. Como artista, a melhor forma de protestar contra um governo autoritário e que punia quem o fizesse, seria usando a arte. E foi assim.

No seu compacto simples a ser lançado incluiu uma música chamada "Apesar de Você", que continha uma letra ambígua, mas que, para um Governo que percebia (e proibia!!!!!!!!!) até, literalmente, o pensamento interpretativo opositor, Chico tinha certeza de que seria barrado pela censura. A música começava com dizeres claros contra o AI-5:

"Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não
A minha gente hoje anda
Falando de lado e olhando pro chão"

Com toda essa carga de protesto, ainda assim, parecia uma canção romântica e de desilusão amorosa. E, para surpresa de toda a MPB, principalmente de Chico Buarque, a música foi aprovada pela censura!!!!!! Quando chegou às lojas vendeu mais de 100 mil cópias, tornado-se o primeiro lugar nas paradas de sucesso e levando outros artistas a se manifestarem contrário ao Regime.


Em fevereiro de 1971, ou seja, no ano seguinte ao lançamento, o jornalista Sebastião Nery, do Tribuna da Imprensa, publicou artigo onde dizia que seus filhos cantavam a música como se fossem hino nacional. Pronto, estava armada a confusão. Chamado para depor na polícia sobre a afirmação, enfim, o Governo percebeu que a música era feita contra o então presidente Emílio Garrastazu Médici!!!!!!!!! Foi proibida sua execução em todos país, sendo retirado de todas as lojas que o comercializavam. Os oficiais do Regime invadiram a sede da Philips e destruíram as cópias ainda em fabricação e o censor que aprovou a música, punido.

Chico Buarque foi chamado para depor e dar explicações sobre o "Você" na letra da música que, segundo o mesmo afirmou para os militares, se tratar de "uma mulher muito mandona, muito autoritária". Daquele dia em diante o compositor estava para sempre na mira da Ditadura e Censura, levando-o até a usar pseudônimos para assinar músicas próprias.

Mas já era tarde. A música fazia sucesso pelo Brasil e até foi regravada por alguns artistas. Entre eles, Clara Nunes. Ciente da letra, mas amparada pela aprovação do censor, a cantora regravou a canção durante o período. Por conta disso, foi obrigada pelo Governo a cantar nas Olimpíadas do Exército e gravar o "Hino das Olimpíadas do Exército". Assim como Chico, Clara foi chamada para "prestar esclarecimentos" e afirmou que não teve a intenção de qualquer ato político, apenas artístico.

Num dos seus shows, Elis Regina cantou a música e a repercussão chegou ao Governo, que também a convocou para depor. Elis e outros nomes de peso da MPB também se viram obrigados a prestarem "serviços" publicitários aos Militares após esse episódio.

Além das duas, Maria Bethânia, Beth Carvalho e Benito de Paula regravam a obra, anos depois, mas já sem os braços da censura.



Apesar de Você
(Chico Buarque)

Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não
A minha gente hoje anda
Falando de lado e olhando pro chão
Viu?
Você que inventou esse Estado
Inventou de inventar
Toda escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar o perdão

Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Eu pergunto a você onde vai se esconder
Da enorme euforia?
Como vai proibir
Quando o galo insistir em cantar?
Água nova brotando
E a gente se amando sem parar

Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros. Juro!
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Esse samba no escuro

Você que inventou a tristeza
Ora tenha a fineza
De "desinventar"
Você vai pagar, e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar

Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Ainda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria

Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença

E eu vou morrer de rir
E esse dia há de vir
Antes do que você pensa
Apesar de você

Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia

Como vai se explicar
Vendo o céu clarear, de repente
Impunemente?
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente
Apesar de você

Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Você vai se dar mal, etc e tal
La, laiá, la laiá, la laiá

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