Como uma das novidades e reformulações, lanço hoje a nova coluna, a "Estúdio Musical". Toda sexta-feira (com exceção de hoje que é a estreia) irei contar algumas das mais curiosas passagens ou momentos musicais, que pouca gente conhece e que marcou para sempre a história da música.
Teremos uma hoje e, excepcionalmente nesta sexta, uma outra, com uma história curiosa e até abusada sobre os Guns N' Roses.
Na coluna de lançamento conto a história mais famosa da Música Popular Brasileira, que terminou com uma herança tão valiosa para a nossa cultura, que até hoje rende estudos acadêmicos: Noel Rosa x Wilson Batista.
Entendam a polêmica e divirtam-se!
Para entendermos o que ocorreu, precisamos nos transportar para o Rio de Janeiro do começo do século XX, mas precisamente na década de 20, onde os direitos autorais não existiam com tanta regulamentação. O que realmente valia era a palavra e o testemunho dos amigos. O samba era discriminado e visto como algo marginalizado, bem como acontece hoje em dia com o funk na sociedade: Som oriundo de favela e de pessoas de classe baixa.
(APÓS O VÌDEO, VEJA A LETRA DE CADA SAMBA CITADO)
Tudo começou com o lançamento da música “Lenço no Pescoço”, onde Wilson Batista falava de maneira pejorativa do malandro sambista, dizendo que o mesmo trazia navalha no bolso e não gostava de trabalhar. Noel Rosa ouviu aqueles versos de dentro de um bar, durante uma de suas muitas noites boêmias e resolveu "responder" a canção com “Rapaz Folgado”, onde desmentia a imagem do sambista e dizia ser, segundo a descrição do outro sambista, "palavra derrotista".
Wilson foi avisado da música criada pelo Noel e contra atacou com “Mocinho da Vila”, que zombava da fama de "doutor" do bacharel nascido na Vila Isabel. Mas mexer com seu bairro querido era mexer em toca de leão! Com “Feitiço da Vila”, o sambista fez história na música brasileira e ainda fez uma apologia ao samba da sua área.
Batista então compôs “Conversa Fiada”, sempre irônico e magistral na provocação, mas Noel, revoltado com as palavras colocadas pelo "inimigo", atacou com “Palpite Infeliz (uma das minhas músicas prediletas do Noel) e de um teor agressivo pouco conhecido do mesmo.
Então Wilson, já sem argumentos, o rival fez “Frankstein da Vila”. A letra tratava do defeito de nascimento do Poeta da Vila, devido a um fórceps. Péssimo gosto do talentosíssimo sambista…
Só que Noel não respondeu por algum tempo, mas depois fez a "João Ninguém" e ainda pegou uma melodia do Wilson, colocando uma letra, fazendo as pazes. Chama-se “Deixa de ser convencido”
Os sambistas voltaram a se falar e compuseram muitas outras obras, mas nenhuma outra teve tanto valor quanto as colocadas por eles na "disputa". Momento nunca mais visto na MPB e que lançou os mesmos à fama.
Quem venceu a disputa? A Música Popular Brasileira! Ganhamos obras-primas e cada qual com seu talento, Wilson na ironia ácida e muita malandragem e Noel Rosa com toda elegância e classe nas canções.
Confira todas músicas no vídeo, leia as letras e relembre um momento único na história:
Vejam a disputa:
Lenço no Pescoço
Wilson Batista
Meu chapéu do lado
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser tão vadio
Sei que eles falam
Deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha
Andar no miserê
Eu sou vadio
Porque tive inclinação
Eu me lembro, era criança
Tirava samba-canção
Comigo não
Eu quero ver quem tem razão
E eles tocam
E você canta
E eu não dou
x
Rapaz Folgado
Noel Rosa
Deixa de arrastar o teu tamanco
Pois tamanco nunca foi sandália
E tira do pescoço o lenço branco
Compra sapato e gravata
Joga fora esta navalha que te atrapalha
Com chapéu do lado deste rata
Da polícia quero que escapes
Fazendo um samba-canção
Já te dei papel e lápis
Arranja um amor e um violão
Malandro é palavra derrotista
Que só serve pra tirar
Todo o valor do sambista
Proponho ao povo civilizado
Não te chamar de malandro
E sim de rapaz folgado
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Mocinho da Vila
Wilson Batista
Você que é mocinho da Vila
Fala muito em violão, barracão e outros fricotes mais
Se não quiser perder
Cuide do seu microfone e deixe
Quem é malandro em paz
Injusto é seu comentário
Falar de malandro quem é otário
Mas malandro não se faz
Eu de lenço no pescoço desacato e também tenho o meu cartaz
X
Feitiço da Vila
Noel Rosa
Composição: Noel Rosa / Vadico
Quem nasce lá na Vila
Nem sequer vacila
Ao abraçar o samba
Que faz dançar os galhos,
Do arvoredo e faz a lua,
Nascer mais cedo.
Lá, em Vila Isabel,
Quem é bacharel
Não tem medo de bamba.
São Paulo dá café,
Minas dá leite,
E a Vila Isabel dá samba.
A vila tem um feitiço sem farofa
Sem vela e sem vintém
Que nos faz bem
Tendo nome de princesa
Transformou o samba
Num feitiço descente
Que prende a gente
O sol da Vila é triste
Samba não assiste
Porque a gente implora:
“Sol, pelo amor de Deus,
não vem agora
que as morenas
vão logo embora
Eu sei tudo o que faço
sei por onde passo
paixao nao me aniquila
Mas, tenho que dizer,
modéstia à parte,
meus senhores,
Eu sou da Vila!
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Conversa fiada
Wilson Batista
É conversa fiada dizerem que o samba na Vila tem feitiço
Eu fui ver para crer e não vi nada disso
A Vila é tranqüila porém eu vos digo: cuidado!
Antes de irem dormir dêm duas voltas no cadeado
Eu fui à Vila ver o arvoredo se mexer e conhecer o berço dos folgados
A lua essa noite demorou tanto
Assassinaram o samba
Veio daí o meu pranto
X
Palpite Infeliz
Noel Rosa
Composição: Noel Rosa / Araci de Almeida
Quem é você que não sabe o que diz?
Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila Não quer abafar ninguém,
Só quer mostrar que faz samba também
Fazer poema lá na Vila é um brinquedo
Ao som do samba dança até o arvoredo
Eu já chamei você pra ver
Você não viu porque não quis
Quem é você que não sabe o que diz?
A Vila é uma cidade independente
Que tira samba mas não quer tirar patente
Pra que ligar a quem não sabe
Aonde tem o seu nariz?
Quem é você que não sabe o que diz?
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Frankenstein da Vila
Wilson Batista
Boa impressão nunca se tem
Quando se encontra um certo alguém
Que até parece um Frankenstein
Mas como diz o rifão: por uma cara feia perde-se um bom coração
Entre os feios és o primeiro da fila
Todos reconhecem lá na Vila
Essa indireta é contigo
E depois não vá dizer
Que eu não sei o que digo
Sou teu amigo
X
Deixa de ser convencida
Composição: Noel Rosa e Wilson Baptista (1935)
Deixa de ser convencida
Todos sabem qual é
Teu velho modo de vida
És uma perfeita artista, eu sei bem,
Também fui do trapézio,
Até salto mortal
No arame eu já dei.
E no picadeiro desta vida
Serei o domador,
Serás a fera abatida
Conheço muito bem acrobacia
Por isso não faço fé
Em amor, em amor de parceria
(Muita medalha eu ganhei!)